TRABALHADORES DO BRASIL

Convidado a participar de uma mesa no 2º FLIBH, aceitei, apesar de ter decidido, há um ano, não participar mais de mesas. Aceitei porque os curadores, Francisco de Morais Mendes e Adriane Garcia, me disseram que a mesa, "A voz dos personagens invisíveis", foi inspirada no meu livro Lambe-lambe
Optei por colocar em discussão a invisibilidade do trabalho. Mais do que nunca, as relações trabalhistas e a visão da sociedade sobre o trabalho ameaçam o trabalhador a uma ainda maior invisibilidade -- ou inexistência... O título, Trabalhadores do Brasil, é uma referência a Wander Piroli, que usou a expressão de Getúlio Vargas para intitular um de seus excelentes contos em que sempre dava voz a personagens invisíveis.
(O texto está registrado de modo a servir de guia à minha própria interpretação.)


TRABALHADORES DO BRASIL
setembro/2017
Para Aline, Arlete, Décio, Dih e Wanda, colegas de Usina.

     Boa tarde, pessoal. Eu trabalho no centro cultural da prefeitura, meu serviço é varrer o galpão e limpar a sala de oficinas todo dia, não é mole não. Tem três anos que sou fichada, isso é bom, mas não dá muita garantia, o pessoal lá da empresa por um nada troca a gente de lugar ou então manda embora mesmo, tem que andar na linha – na linha deles, é fogo.
     Minha mãe também foi faxineira, mas em casa de família. Era aquele negócio de dormir na casa da patroa, tomar conta de menino, meio que era da família, trabalhou com esse pessoal muitos anos. Mas mamãe foi despedida porque a casa foi assaltada e o ladrão era um conhecido nosso, o Xavier, que tinha mercearia lá no bairro, mercearia pequena, duas portinhas, mas ele não aguentou a concorrência do BH e fechou. Ficou desempregado um tempo, andou tomando umas pingas a mais, e teve essa ideia ruim, porque além de preso, provocou a demissão de mamãe: depois de tantos anos, os patrões achavam que ela tinha facilitado o assalto, mas como não podiam provar nada, simplesmente mandaram ela embora.
     Mas isso é água passada, não é bom ficar remoendo coisa ruim, como diz o Tião carroceiro. Acho que Tião sempre foi carroceiro, lembro dele eu era pequenininha e ele já nessa lida: entulho, armário velho, fogão velho, mudança, ele faz de tudo. Diferente do filho dele, o Tiãozinho que é meio maconheiro, meio artesão, faz aqueles cachimbinho de durepoxi pra vender na praça sete. Sua tia, dona Sebastiana, é uma doceira de mão cheia. Ninguém faz festa sem contratar ela, tem mãos de fada, como diz o Napoleão, professor aposentado que dá aula particular pra molecada. Esse é inteligente mesmo, um crânio, usa óculos fundo de garrafa e até faz poesia! É ele também que puxa a associação do bairro, ele que bota lenha na fogueira, porque se deixar, o Juvenal, farmacêutico... diz o Napoleão que o Juvenal é um tremendo pelego, amigo do vereador Gastão que é cunhado do prefeito e aí já viu, né?
     Por falar de política, deixa contar essa: outro dia fui levar as folhas de ponto lá na fundação de cultura porque a colega que faz isso tava gripada,  mas aí eu já ia saindo lá da sala da Celeste, quando todo mundo correu pra janela. Era uma daquelas manifestações grandes, gente pra caramba, nunca tinha visto tanta gente junta fora do Mineirão. Como é no terceiro andar, dava pra ver até quem tava lá. Fiquei abismada! 
     De cara lá vem o Juvenal e o Napoleão segurando uma faixa escrito ABAIXO A não sei o quê.
Vi seu Nem, pedreiro, com uma lata de tinta na mão;
vi o Gonçalves, açougueiro, de avental manchado de sangue;
vi dona Clara, a melhor bordadeira do mundo, abraçada com sua companheira, dona Pretinha;
vi o amolador de facas que às vezes passa pelo bairro;
vi o Miguelzim, que vende pirulito de café e quebra-queixo pra ajudar a mãe viúva, tadinha, nunca trabalhou, porque o marido, que era ascensorista, morreu no dia que o elevador caiu do vigésimo andar, porque a empresa de manutenção quis economizar nos materiais que tinham que ser trocados, conforme denunciou o técnico – que foi demitido, claro;
vi na esquina do Othon o mendigo que faz ponto ali há mais de 30 anos, com a caçarola de esmolas entre os cotocos das pernas que perdeu por conta de uma diabetes mal tratada;
vi Oldair, o barbeiro mais antigo do bairro;
vi minha amiga  Nádia, quem diria, a Nádia caixa do Leroy-merlin, toda religiosa e metida nessas coisas;
vi uma família de ciganos abordando os manifestantes pra ler a sorte;
vi os camelôs trançando com carrinhos de cerveja;
vi seu Zé Leiteiro que tem esse apelido porque ele entregava mesmo leite  de porta em porta antigamente, agora vive de bicos apesar da idade;
vi uma turma de pessoas meio mal vestidas de boné vermelho carregando cartazes que eu não consegui ler;
vi o Waldemar gente fina, garçom da pizzaria que a gente vai de vez em quando;
vi uma turma da SLU de macacão laranja, todo mundo dançando como se fosse carnaval;
vi uns 10 motoboy formando uma fila na lateral protegendo a passeata;
AH, e o tempo ouvindo um grito que eu não entendia, tipo:  (fora temer, diretas já);
vi o Robson que é adestrador de cachorro e padeiro;
vi uns flanelinha, não sei se eles tavam trabalhando ou de farra ou manifestando;
tinha até aqueles malabaristas de sinal, eles vinham no meio do povo, um perigo danado um pau daqueles bater na cabeça de alguém;
os motoristas de ônibus, presos na rua da bahia, ficavam buzinando. Deve ser fogo, né, rala o dia todo e tem que esperar passeata;
     Bem nessa hora o caminhão do som parou em frente à feira das flores e aí deu pra ouvir o que eles tavam gritando. Era FORA TEMER, DIRETAS JÁ.
     Eu não sei se essa gritaria toda adianta alguma coisa, não sei...

     Sei que ainda tinha andarilho, feirante, morador de rua, pichador, porteiro, sorveteiro, telefonista, vigilante, vidraceiro, carregador, carpinteiro, encanador, despachante, serralheiro, mecânico, metalúrgico, gráfico, contador, cobrador, funcionário público, eletricista, enfermeiro, borracheiro, balconista, bibliotecário, zelador, telhadista, tintureiro, sapateiro, secretária, segurança, salva vidas, recepcionista, relojoeiro, panfleteiro, podólogo, protético, contínuo, ourives, manobrista, manicure, mensageiro, moleiro, lavadeira, leiturista, jardineiro, jornaleiro,  intérprete de libras, guia de turismo, ferreiro, florista, frentista, funileiro, embalador, entregador, estagiário, estofador, lambe-lambe, dedetizador, prostituta, desentupidor, calceteiro, digitador, carteiro, chapeiro, chaveiro, trocador, contrarregra, copeiro, tratorista, cozinheiro...
     Ufa!

     E a gente pendurada na janela até que chegou um cara da fundação lá na sala, não sei que setor ele trabalha, acho que é chefe de alguma coisa, porque tem cara de chefe, roupa de chefe, cabelinho de chefe, perfuminho de chefe, vozinha de chefe e com jeitão de chefe disse bem assim: “Isso aí é tudo gente à toa, cambada de vagabundo sem o que fazer.”
     Olhei pra ele e não entendi. Eu tinha visto tanto trabalhador ali. É um povo que não vai ficar rico nunca, porque é honesto, mas tava lutando lá do jeito deles. Deixei o medo de lado e falei encarando ele:
     – Eu acho que eles tão certo, tem que reclamar mesmo.
     – E quem a senhorita pensa que é?
     – De-desculpa, sou faxineira lá da, da... Mas eu acho que, que...
Ele me cortou na maior grosseria:
     – E alguém te perguntou alguma coisa, sua... sua...?
   
     Nossa! Fiquei numa raiva danada, com um ódio... Deu vontade de pular no pescoço do disgramado. Não, deu vontade de ir lá pra avenida, pegar o microfone e falar tudo que tá engasgado aqui! ............ Mas eu não posso ir, por um nada a firma me manda embora e eu tenho duas filhas pra criar, maridão tá desempregado...... Mas acho que é isso mesmo, tem mais é que fazer uma revolução!



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