A LONGA HISTÓRIA DE UM ROMANCE
POR QUE E COMO FIZ O LIVRO “LAMBE-LAMBE”
ou
POR QUE ESTOU ESCREVENDO UM ROMANCE DE QUASE MIL PÁGINAS
As “jornadas de junho e 2013” foram um movimento popular nacional açodado
pela mídia comercial contra o PT, o governo Dilma e as bandeiras de esquerda em
geral, a partir da manifestação contra o aumento de vinte centavos no preço da
passagem de ônibus na cidade de São Paulo/SP, governada por Fernando Haddad, do
PT.
Hoje, 2020, todo mundo tem uma opinião sobre o episódio, mas, enquanto
ocorria, o panorama não era tão claro — e ainda há divergências dentro da
própria esquerda.
Nós, que amamos tanto a Revolução, também nos confundimos: não era,
afinal, o povo nas ruas? Mas... que povo era aquele e por que mesmo estava
tomando as ruas do país?
Eu, como vários participantes e analistas das jornadas, me fiz estas e
outras perguntas. Em julho já estava clara a manipulação feita pela mídia e o
rumo protofascista das jornadas. Para mim foi um incômodo intenso ver que a
energia popular existe, mas pode ser tão facilmente conduzida para atender aos
interesses das elites.
Quem eram aquelas pessoas, quais suas histórias, quais interesses a
tiraram de suas casas, onde estavam dispostas a chegar, o que elas esperavam
encontrar, quando?
Enquanto me remoía com essas questões, preparei dois livros de contos
para a editora Escribas, de Natal/RN, que já havia publicado o “Silas”, em
2011: “Novella” e a segunda edição de “A ponto de explodir”.
Eu sabia que só conseguiria respostas através da literatura. A primeira
tentativa foi resgatar o tom usado no livro de poemas “A poesia de plantão”
(1981, inédito), em que emulo a visada poético-política de Maiacóvski e Brecht.
O resultado não me agradava e logo descobri o motivo: estava me colocando a
pergunta errada. O caminho certo estava na epígrafe de Lima Barreto que usei na
primeira edição do “A ponto de explodir”, em 2008: “— Não; absolutamente não.
Os indivíduos me enternecem; isto é, o ente isolado a sofrer; e é só. Essas
criações abstratas, classes, povos, raças, não me tocam...”. Ou seja, a
pergunta do cidadão militante de esquerda não atendia à angústia do escritor.
Para o escritor só importava saber — e, claro, recriar — a biografia dos
indivíduos envolvidos naquela jornada bufa.
***
Sabendo que o volume de trabalho seria grande, decidi criar um método
para não me perder no caminho (sou de natureza dispersa com ascendente em
postergação):
1)
Relacionei dezenas de personagens urbanos
(pedreiros, drogados, imigrantes, mendigos etc.);
2)
Cada sessão de escrita seria destinada a um
deles, com o limite máximo de três páginas (manuscritas em caderno pautado
grande);
3)
Não me daria tempo de pensar sobre eles para
evitar qualquer ranço sociológico; deveria improvisar a partir do meu
conhecimento e experiência pessoal;
4)
Todos os textos começariam com o mesmo bordão,
que acabou sendo “São esses/essas...);
5)
O ponto de vista inicial do narrador seria o de
um fotógrafo lambe-lambe, por ser um observador privilegiado do movimento das
pessoas das cidades grandes. Aqui aproveitei também minha experiência pessoal
como coordenador do Ponto de Leitura (uma biblioteca dominical) no Parque
Municipal de BH, durante alguns anos. E é no Parque que se concentra um bom
número de fotógrafos lambe-lambes, que eu sempre via trabalhando aos domingos.
As centenas de horas passadas junto ao Coreto me deram o privilégio de, como
eles, fotografar milhares de pessoas;
6)
Cada texto seria acompanhado de uma ilustração a
ser definida com o artista convidado;
7)
Eu teria oito meses para fazer os cinquenta
textos e quatro para incluir as ilustrações e ter o livro pronto.
Antes de escrever a primeira linha, apresentei o projeto ao editor Carlos
Fialho, que o aprovou sem pestanejar. Fialho é também escritor e foi
responsável pela edição dos quatro livros citados aqui, através da sua
Escribas, Jovens, à época.
Durante a escrita, convidei o desenhista Guga Schultze para a parceria.
Ele fez cinquenta retratos 3 x 4, nos quais inseri microbiografias, que também
têm seu processo de criação: sempre me incomodou o uso que as pessoas fazem de
trechos de Clarice Lispector e outros para colar em si as qualidades dos
autores. Para criar as microbiografias, recolhi frases desses autores na
internet e de horóscopos e fiz um mix disso. Os nomes esdrúxulos tirei de
listas de cartórios. Um exemplo: “FEDELO ATLÂNTICO – Talvez sua voz seja um
pano, um pano que limpa o tempo, mas o correr da vida embrulha tudo. Sua vida
esquenta e esfria, sossega e depois desinquieta. O que ele quer mesmo é um
pano.”
Os textos de apresentação são de Adriane Garcia, na quarta capa, cuja
leitura crítica iluminou minha própria leitura do livro e de Luiz Ruffato,
posfácio, cuja obra e posições políticas também manifestam o interesse em
desvendar a vida do cidadão comum e dos trabalhadores brasileiros.
O livro foi lançado a partir de março de 2016 em São Paulo (Mercearia São
Pedro e Casa de Cultura Casa Amarela), em BH, Rio, Natal, Recife e João Pessoa.
COMO ESCREVI “O MUNICÍPIO DE
TORMENTA”
Antes de terminar o “Lambe-lambe”, decidi resgatar um personagem antigo
para fazer o próximo livro de contos.
Em 2005, o escritor Rinaldo de Fernandes me convidou a produzir um conto
para a antologia “Contos cruéis – histórias de violência urbana”. Violência
urbana? Como lidar com tema tão espinhoso sem ser repetitivo? Onde encontrar
violência urbana para modelo, fora da realidade? Como escapar do sociologismo e
do preconceito? Ah, sim os jornais têm muito disso. Me propus recriar a
realidade a partir da recriação jornalística. Metalinguagem. Exercícios
literários.
Comprei um exemplar do Diário da Tarde (?), recortei três ou quatro
notícias das páginas policiais e criei o narrador, um velho que fica observando
a vida do seu bairro. Uma mistura de cronista e fofoqueiro, cujos relatos serão
meu conto. Ótimo. Método definido, passei à escrita de “Seu Deus não é o meu”.
(Uma observação relevante: optei por colocar longos trechos da sua fala
entre parênteses. Quando, em 2008, a Pilar Fazito leu os originais do “A ponto
de explodir”, sugeriu a eliminação deles, o que deu maior fluidez ao conto.)
Foi esse cronista e esse método que resolvi ressuscitar em 2016 para
escrever “Alma de subúrbio”, o livro de contos posterior ao “Lambe-lambe”.
A estratégia de definir método e metas deu certo e me senti muito melhor
com ela do que deixando para escrever quando desse vontade, como quase sempre
havia feito. Estabeleci o prazo de um ano para escrever e fazer a primeira
revisão. Não queria me preocupar com a publicação. Durante algumas semanas fui
comprando alguns jornais “Aqui” e “Super” e recortando as notícias “policiais”.
O único critério de escolha era o título: quanto mais espetacular, melhor. A
meta era fazer três contos por semana, máximo de cinco páginas cada
(manuscritas em caderno pautado grande). Não podia ler as notícias, recortava e
guardava em um envelope. Cada sessão de escrita consistia em tirar “no escuro”
um recorte e, sem direito a devolução, a partir dele, criar um conto. Fiz o
primeiro conto, fechado; o segundo precisava de mais espaço, por isso quando
fui fazer o terceiro, trouxe parte do enredo do segundo. Escrevendo o terceiro,
me dei conta de que o sistema poderia servir a um romance, projeto muito mais
ambicioso, muito mais desafiador. A partir do quarto, estava já deixando espaço
para criar um roteiro amplo, mas o método continuou o mesmo, diminuindo apenas
o número máximo de páginas para três. Uma brincadeira curiosa a respeito dos
nomes das personagens: em “Seu Deus não é o meu”, elas tinham nomes “burgueses”,
como Roberto Camargo do Nascimento; agora elas herdaram os nomes estranhos que
usei nas microbiografias de “Lambe-lambe”.
Durante a escrita, surgiu um problema grave: a expressão alma de subúrbio
estava guardada como título há algum tempo para fazer uma declaração de afeto
pela periferia, mas esse romance estava ficando muito violento – e eu não tenho
essa visão preconceituosa da periferia. Conversando com Adriane Garcia,
interlocutora preciosa desde 2013, quando nos conhecemos, constatamos que o
romance não poderia se chamar “Alma de subúrbio”. A cidade onde se passa a
história se chamava Dormência, o título poderia ser esse, mas outro
interlocutor importante, uns trinta anos mais antigo, Marçal Aquino, foi quem
me ajudou a evitar, pelo telefone, este e outros títulos mais fracos que me
ocorreram. Acabei achando que uma cidade tão violenta se parecia mais com uma
tormenta que com uma dormência, e acabei chegando a “O município de Tormenta”.
A edição tem uma história à parte. Estávamos vivendo o desgoverno do
golpisto michel temer e optei por me manifestar contra ele fazendo uma edição
não comercial. O zine Bellzebuuu, editado com Adriane, tinha inspiração nos
anos 1970 – por que não levar o romance a essa época de resistência àquela
ditadura, já que estávamos prestes a entrar em outra? O conceito do formato
veio do próprio enredo: o cronista investigativo, protagonista, salva seus
escritos numa pasta de papelão... Produzi artesanalmente os cinquenta
exemplares: em fonte Veteran Typewriter (diagramação em PDF do amigo Ricardo
Costa) fiz as fotocópias em papel Reciclato, juntei um maço de sempre-vivas, um
recorte de jornal, uma folha do meu original manuscrito e lacrei a pasta com
fita adesiva de embalagem. O autógrafo dei em um envelope numerado que continha
o texto de apresentação assinado por Fernando Bonassi e a ficha técnica, que
incluía todos os gastos de produção. Lançamento no Maletta, em junho de 2018.
AGORA EU TINHA O TÍTULO “ALMA DE SUBÚRBIO”
e precisava utilizá-lo. Antes de terminar “O município de Tormenta”,
lembrei que Silas, meu personagem, tinha um lapso de pelo menos vinte anos em sua
biografia conhecida. No livro da Escribas, temos suas aventuras até uns
dezesseis anos e depois aos quarenta, cinquenta. Por que não colocá-lo aos
vinte anos na Tormenta pós-revolução? Ótima ideia. Novamente me dei um ano de
prazo, o mínimo de cinco páginas por semana.
Ele chegaria à cidade para fazer uma pesquisa sobre os efeitos da
revolução, se envolveria com algumas pessoas e depois só o tempo nos diria o que
lhe aconteceria. Passei lá meus doze ou treze meses contando essa história, mas
no fim deixei alguns fios soltos. Um deles resolvi entre novembro/2019 e
março/2020: a filha de Silas conta sua história; o outro, entre março e abril
já no isolamento: o Cronista Investigativo lança um livro com cinquenta textos
publicados em O Tormentense Audaz.
Depois disso tudo, ainda sentia falta de contar melhor as histórias do
Silas e de Tormenta. Ninguém melhor que ele mesmo para fazer isso: ao completar
59 anos em 13/05/2020, resolve registrar suas memórias e esclarecer de uma vez
por todas o que realmente lhe aconteceu. Para dar conta dessa tarefa, me impus
a escrita de quinze páginas por semana até 13/05/2021. E é o que estou fazendo.
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